Ao pesquisar hoje, dados históricos, me deparei com uma data: 28 de março. Como eu nasci dia 28 e meu irmão em março decidi seguir adiante. A pista era boa e prometia me responder algo, induzia-me ao encontro de mais uma peça do quebra-cabeças para a compreensão de quem sou, e do por quê estar encarnado neste país.
Ao seguir a pista, descobri um texto sobre a Guerra do Contestado, um conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e federal brasileiro travado entre outubro de 1912 a agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e madeira disputada pelos estados brasileiros do Paraná e de Santa Catarina. Originada nos problemas sociais, decorrentes principalmente da falta de regularização da posse de terras e da insatisfação da população hipossuficiente, numa região em que a presença do poder público era pífia, o embate foi agravado ainda pelo fanatismo religioso, expresso pelo messianismo e pela crença, por parte dos caboclos revoltados, de que se tratava de uma guerra santa.
Na sanha por mais conhecimento, me deparei com o documentário “O Contestado – Restos Mortais”, do catarinense Sylvio Back, que além de ser um filme histórico é um filme… espírita!
O diretor colocou diante da câmera médiuns que incorporaram espíritos de pessoas envolvidas no conflito. “Incorporados”, vítimas e rebeldes contam suas histórias, gritam por socorro da mãe, e explicam porque lutaram.
E um dos detalhes mais incríveis do filme é que um dos historiadores entrevistados afirma que os caboclos em fuga foram perseguidos e mortos até a cidade de… Santa Maria!
Guerra do Contestado – Restos Mortais
Entrevista Sylvio Back TV Brasil
Entrevista para http://cpdoc.fgv.br/contestado/ecos/sylvio-back
CPDOC: Em seu penúltimo filme O Contestado – Restos Mortais (2010) você voltou a abordar o tema, desta vez a partir de fontes pouco tradicionais, que foram os testemunhos de médiuns. Conte-nos sobre essa experiência.
SYLVIO BACK: A inclusão do relato mediúnico como fio condutor do filme pegou de surpresa espectadores e críticos quando da exibição de “O Contestado – Restos Mortais” na competição dos festivais “É Tudo Verdade” e em Gramado. Houve quem, equivocadamente, até elogiasse a minha direção de atores durante os debates por não acreditar que aquela trintena de médiuns explodindo em falas insólitas, choros, risos, apelos, gritos e sussurros, era um elemento de linguagem. Ao invés de uma encenação teatral, era uma incursão, digamos, à “invisibilidade” do Contestado, ele mesmo, inoculado pelas mais insondáveis correntes místicas e míticas.
Houve, também, quem ridicularizasse o recurso, talvez, por desconhecer minha filmografia, toda ela na contramão do discurso cinematográfico, majoritariamente, anódino e conservador, ora em cartaz (documentários de corte “chapa branca”, que repicam o vezo do Estado ou de ideologias políticas; hagiográficos e/ou turísticos), onde jamais dublei um estilo narrativo, mas cujo objetivo sempre foi deixar o espectador desarvorado, sem saber se deveria ou não acreditar no que vê e ouve. Como teve crítico que deu crédito ao inaudito recurso pontuado por “vozes do além” que trazem à tona uma “outra” verdade nunca antes arvorada sobre a Guerra do Contestado.
E, pela constatação de que eu, com essa operação cinemática, levar ao espectador a própria polêmica se a mediunidade colocada sob suspeita por alguns depoimentos, como encará-la, como aceitá-la hoje dentro de um filme que se quer “histórico”? Por não ser “espírita”, nem adepto de qualquer credo religioso, mas por respeitar e admirar a imponderabilidade e o mistério que corpo, espírito e alma mutuamente se conjuram, é que promovi em “O Contestado – Restos Mortais” um amálgama de cinema, depoimentos e testemunhos, iconografia fixa e em movimento, história e mitologia, fatos & atos, tênues de veracidade e verossimilhança.
Todo esse aparato audiovisual, de aparente difícil absorção mental, imbricado ao inconsciente coletivo que continua a fervilhar na região, se aplica para tentar desvendar um Contestado até hoje ainda insepulto, inacessível, inconcluso! O espectador é sempre mais esperto e rápido do que o filme e o diretor juntos, já que o olho é mais rápido do que o pensamento. Portanto, a inserção do relato dos médiuns no miolo do filme, e que perturba e conturba seu fluxo, serve justamente para borrar as fronteiras draconianas entre documentário e ficção. Afinal, qual a diferença entre ambos: uma vez o real filmado torna-se depositário infiel do pretérito, ou seja, uma ficção sempre mediatizada pela imponderabilidade da memória. Cada um apropria e introjeta seu complexo sentido como achar melhor, acreditando, endossando, edulcorando, contraditando ou desconfiando. Eu faço um cinema que desconfia!
Depois, o projeto nunca foi fazer um documentário tal qual (não sou um documentarista lato senso) sobre a Guerra do Contestado, daí os clipes com imagens de arquivo (fotos & filmes), por exemplo, raras vezes surgirem para sublinhar depoimentos e entrevistas, o que seria empobrecê-las, desacreditar nas minhas próprias imagens e na capacidade de “viajar” do espectador. Ao contrário, por serem todas flagrantes oficiais, feitos de encomenda, a própria “história oficial” funciona como uma espécie de contraponto ”heroico” do que sobrevive da realidade trágica na cabeça das pessoas um século depois. Essa autonomia do acervo, premeditadamente procurada, e colocada sob suspeita pelas recordações afetivas e pela história, é uma das claves que emprestam a amperagem polêmica do filme e que melhor lhe definem o torque revisionista do tema face às minhas convicções como homem e artista.