Alejandro, um amigo argentino voltou à cidade do Rio de Janeiro. Decidimos organizar um encontro com todos os seus conhecidos cariocas para recepcioná-lo. Escolhemos uma pizzaria e marcamos para o início da noite. Por mais que um ou outro convidado não se mostrasse disponível, onze compareceram ao encontro, incluindo um, o décimo-primeiro, que teve que ser retirado de casa à força (quase sem resistência). Com três carros, recolhemos os participantes para a noitada e lá fomos nós. No restaurante, três mesas foram reunidas para receber os convidados. Reservamos o lugar no meio para nosso amigo argentino e sua esposa. Fizemos de tudo para deixá-los à vontade. O portunhol era a língua oficial da noite. O ruído dos talheres e dos copos, sorrisos e camaradagem davam a tônica.
No meio da festa, uma surpresa: uma conhecida que eu não via há anos, com quem eu não me dava bem, e que nem era amiga do argentino, deu as caras, sem ter sido convidada. Essa “amiga” foi a décima-segunda a chegar. Os onze viraram doze. A “décima-segunda” (vamos chamá-la assim) me viu, obviamente sabendo que eu era o anfitrião, fez um gesto meio incomodado, na obrigação de me cumprimentar, desviou o olhar e falou com um dos convidados, que levantou da mesa principal para papear com ela em uma mesa ao lado. Ficaram lá, os dois, no papo bem baixinho, para ninguém ouvir. E na minha frente. Lógico que rolou um climão, mas não era exatamente problema meu. Eu prossegui na minha. Ela não estava à vontade e nem eu, mas deixei para lá, só que ela estava no meu ângulo de visão. Para evitar maiores constrangimentos perguntamos aos dois exilados por que não sentavam conosco. O convite foi aceito na hora, mas as mesas permaneceram em três com o acréscimo de uma cadeira. Nem é preciso dizer que ela escolheu ficar na minha frente, os dois frente à frente.
Conversa foi, conversa veio e, em um momento de trégua, não sei dizer se ela ou eu, um dos dois tentou iniciar uma conversa amena. Porém, em uns trinta segundos os ânimos se exaltaram. Alguns dos participantes, notando o aumento do tom de voz da dupla, tentaram apaziguar os ânimos. “Ninguém é inocente”, já dizia o dito popular e os apaziguadores foram alvejados também – quem manda ficar na linha de tiro? A terceira guerra estava declarada. Não havia mais argentino para exigir nosso bom comportamento. Então ocorreu o impensável parte um: meu corpo foi tomado por uma cãibra aparentemente sem função. Ou pelo menos, bem no comecinho, eu achava que era isso. Depois percebi que era incorporação. Eu, que não acreditava nessas coisas, fui tomado por uma onda gigantesca de energia. Cobriu-me da cabeça aos pés, chacra após chacra. Subitamente, já não era mais eu o único dono do corpo. Senti-me pela metade, se é que é possível sentir-se assim. Para os médiuns e afins, esse é um acontecimento trivial: incorporar, mas em público e cercado de testemunhas era uma situação estranha. Estava incorporado por algo, ou por alguém pela metade, como se tivessem dividido meu corpo em regime de comuna. Socializaram-me no nível espiritual. Só faltava a placa: “Sob nova direção”.
É uma sensação estranha, como se o “convidado espiritual” (fosse um espírito, alguém ou você mesmo projetado, em outro nível de consciência) passasse a mandar na sua casa – sem ter lhe sido apresentado. Assim que recuperei a direção do olhar, fitei a “décima-segunda” olho no olho. Entrei dentro dos olhos e a partir daí, lhe escaneei a alma, o antes e o durante. Pude acessá-la por completo, com os dados entrando em meu HD sem interferência. Seus olhos eram como vitrais em profusão de revelações. Pupilas, córneas e íris não eram empecilhos para chegar ao seu âmago. Tornou-se translúcida. Juntamente com a nova visão, chegou um brinde: uma redentora compreensão “técnica” do objeto estudado. Se é que posso explicar assim. Era possível lhe decifrar os pensamentos, lhe compreender o espírito assim como era possível saber sobre seus erros, acertos, conceitos, vontades, verdades e mentiras. Haviam me dado passe livre para a mente da “décima-segunda”
Sem autorização, minha ou dela, ou dos outros envolvidos na contenda, comecei a relatar o que lhe ia à alma. Os onze ficaram em silêncio (menos eu que falava). Os talheres cessaram. O restaurante parou para ver e ouvir aquilo. A Décima-segunda tentou reagir, mas já era tarde.
– Você mente pra si – “nós” (eu e ele) dissemos.
– Como assim “mentir”? Quem é você pra saber da minha vida?!
– Eu posso ver através dos seus olhos. Você pode mentir para si, para todo mundo mas não pode enganar todos durante todo o tempo. Você não é uma pessoa feliz.
– Pare de falar besteira – você por acaso é o dono da verdade?!
– Pense bem sobre a vida que você tem levado. Não pense sobre a minha. Nesse momento não é o Carlos que está aqui falando. Ele está tão ou mais surpreso do que você. Há um convidado dividindo o corpo: eu. Ele queria te ajudar há muito tempo mas não tinha como. Imagine o grau de dificuldade que foi arrumar esse encontro para colocar vocês dois, frente e a frente. Há muita coisa envolvida nessa história. Julgue, reflita e prove se eu estou errado.
– Eu sou muito feliz! Reagiu enfaticamente. – Você não tem noção do que está falando! Eu sou a pessoa mais feliz deste mundo!
– Vamos ver. Se você reagir saindo desse círculo vicioso, ficará mais fácil sentir a diferença entre quem está sentada aqui e a nova pessoa na qual você se tornará daqui a seis meses. O caminho será difícil, mas extremamente produtivo. De todos nesta mesa você é a maior necessitada e a maior esperança de mudança.
Assim que “terminamos” o linchamento, o clima foi de consternação. Até o maitre havia parado para escutar. Lentamente o “convidado” que tomara conta do meu corpo, se retirou. Imagine a minha cara quando ele me deixou sozinho… Sejamos francos, você convidaria o imponderável para a sua festa? Você faria uma rega-bofe em centro espírita? Vaticínios respeitam a etiqueta?
Conviver com alguém assim (ou seja: pessoas que incorporam em eventos sociais) dá um certo receio. Os que não me condenaram, consideraram-me caso para internação. Aquela foi a primeira e última reunião do grupo dos doze. Não sei se o acontecido foi a gota d’água ou se ali uma nova fase teve início. Ainda é cedo para maiores conclusões. Tenho de chegar aos cem para ter certeza. Não poderia pedir que me compreendessem, até isso eu entendia, eu deveria ficar, como fiquei, calmo com o linchamento: “Que absurdo o que VOCÊ (obs: EU?) falou para a menina!” e coisas desse tipo. Situaçãozinha surreal, hein?
Não se passou um dia sem que os telefonemas de reprovação recomeçassem: “Por que você fez isso com a coitada?”, “Você está perdendo o controle”, “Por que você não tira umas férias?”. Fui soterrado por críticas e respondi com sorrisos.
Os meses se passaram. O eclipse descrito na postagem anterior deste blog chegou (Operação Espiritual e Fim do Mundo – um testemunho). Aconteceu o que aconteceu. Um tempo depois, em uma dessas “sincronísticas” viradas de uma esquina para a outra, onde nunca se passa, onde nunca se pensa em passar, a “moça do outro lado da mesa”, a “décima-segunda” esbarrou comigo na rua. Eu a caminho de casa, ela vindo da praia.
– Eu queria te pedir desculpas por aquela noite… – comecei.
– Não, não, não, sou eu quem te deve desculpas. Você tinha razão. Eu era muito infeliz mas não queria assumir. Quando parei para pensar vi o quanto eram equivocadas minhas últimas decisões. Meu casamento estava um tédio. Eu não evoluía profissionalmente e resolvi dar um fim nisso.
– De qualquer jeito, me desculpe pela forma como falei contigo. – Me desculpei pelos “dois”.
– Deixa pra lá, já passou – disse, erguendo o rosto.
Quando mirei em seus olhos vi uma pessoa tentando seguir um rumo diferente, mesmo que novos problemas surgissem. A implicância que eu nutria por ela havia desaparecido. Nada como um dia após o outro. Alimentar essa bobagem por tanto tempo… Nada a ver. Nos abraçamos. Pedi mais desculpas pelas perseguições ao longo da década, o que, colocando em miúdos, já contabilizava bastante tempo e perda de energia. Ela sorriu. Sua voz estava mais branda. Desejei muito boa sorte e coragem. Nada como a sensação de amar indiscriminadamente. Amadurecimento tem a ver com algumas mudanças, ajustes e perdas. Estamos em constante evolução, analisando conceitos e ideias. Não dá para ficar perpetuando o que já mofou. Fiquei feliz por ela e por saber que podemos dar um rumo novo às nossas vidas.
O “convidado” (do além) sem convite era dos bons, ele sabia das coisas. Às vezes fico preocupado dele baixar em outro – não por ciúme, mas para ficar vigiando meus passos. Fico imaginando o vexame que passei aquele dia – imagina se eu entro em um supermercado e a balconista começa a me dar um pito histórico, falando dos erros cometidos nas encarnações anteriores? Coisa de louco.
Curiosamente, soube algum tempos depois, que a “Décima-segunda” havia decidido separar-se do marido americano durante o mesmo eclipse, que mencionei acima (Nostradamus). Ela simplesmente fez as malas, deixou o apartamento em Nova Iorque onde era bancada e se entorpecia, sofreu os efeitos do eclipse, entrou no avião, sem dar adeus ao gringo e voltou ao Rio.
Anos após esse encontro na rua, soube que ela havia voltado a viver com a mãe no interior e que ela havia se machucado, caindo de uma janela, ou ferido a mãe, já não lembro bem, mas o fato é que ela voltara a se drogar, a beber sem parar. Tivera a chance, e por um momento compreendera que dava para ter uma vida diferente, sem drogas e sem energias negativas, mas ela simplesmente não quis.
Nesse momento, o espírito se retira. Ele fez a parte dele.
Essa é uma das lições que aprendemos na vida: que as pessoas que nos tentam fazer mal, na verdade não são nossos “inimigos”: elas são importantes em nosso processo de amadurecimento; são mestres na arte de nos depurar para nos tornarmos mais tolerantes e nos ensinam a perdoar.
Me sinto muito feliz quando vejo o Cruzeiro do Sul sobre minha cabeça – por mais longe que ele esteja -, o que me dá muita segurança. Costumo sorrir para o Cruzeiro. E ele me dá uma piscadela de volta. Agimos como confidentes. Segui o meu caminho. Décima-Segunda seguiu o dela. Nunca mais nos vimos. Décima-Segunda era indispensável àquela noite. A festa, na verdade, não era para o argentino mas, sim, para ela. Esse pessoal do “outro lado” tem cada uma…
Cada um dos doze convidados leva a sua vida agora. Muitos não estão mais no Rio, outros separaram-se, alguns trocaram de amizade, de profissão, mas todos estão vivos.
E a vida continua…