Sobre Crianças e Escravos.

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Uma história.

No dia do meu aniversário, realizei um antigo sonho: conhecer o memorial dedicado aos “Pretos Novos”, os escravos recém chegados ao Rio de Janeiro, mas que ainda não haviam sido “adaptados” ou “amansados”, por isso mesmo chamados de “Novos”. Desde o início deste blog – que em final de setembro de 2015, comemora 5 anos – venho alardeando minha ligação com o número 28. Para tomar a decisão de ir ao Valongo, soube que neste cemitério haviam sido identificadas 28 ossadas.

A história do local, na verdade um sítio arqueológico, é fascinante: o casal Guimarães comprara uma antiga casa na Gamboa em 1996, zona portuária do Rio, mas ao fazer a reforma, os pedreiros descobriram ossos humanos sob as fundações. Arqueólogos e historiadores da Prefeitura concluíram que a casa havia sido erigida sobre o antigo Cemitério dos Pretos Novos, cuja localização havia se perdido no tempo, ou pior:  esquecida deliberadamente.

Idêntico aos fornos crematórios nazistas, milhares de escravos (oficialmente, cerca de 6 mil) foram atirados ao chão, e não enterrados em covas. Jogavam-lhes terra sobre os corpos em um espaço de 110 metros quadrados – cercado por muros baixos de casas residenciais. As análises dos fragmentos, feitas a partir de 1996, indicaram que os ossos foram queimados após a descarnação em busca de espaço para tamanho número de cadáveres.

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Estar ali, naquele local em 2015, e ver os ossos à flor da terra, me provocou um profundo pesar e reflexão. Mostra-se evidente uma triste característica de nossa “brasilidade”: a negação (ou esquecimento) e a não aceitação dos fatos. Fingir que nada aconteceu, responsabilizar as autoridades e negar o holocausto são faces da mesma moeda. Uma contradição chamada país que se diz amigável, festeiro, e “pacífico”. Todos sabem que “chover no molhado” é responsabilizar as “elites”, mas também é inegável que, como o país foi construído, e tem sido até hoje, quem determina o “modus operandi” é de fato a elite política e econômica.

A comparação entre a carbonização dos corpos no cemitério carioca entre os séculos XVIII (o século das “luzes”) e XIX e os nazistas no século XX é óbvia: os alemães, um povo desenvolvido, também foram capazes de fingir que não viam os judeus serem segregados. Desde que houvesse estabilidade econômica, o resto era perfeitamente aceitável.

Ao revelar ao mundo, os horrores dos campos de concentração alemães em 1945, o General americano Dwight Eisenhower exigiu que os cidadãos de Gotha, enterrassem as centenas de corpos encontrados em um sub-campo de Buchenwald, em Ohrdruf no sudoeste da Alemanha. Após testemunhar o horror, o prefeito de Gotha e a sua esposa se enforcaram.

O Brasil se desenvolveu graças à escravidão, fez vasta fortuna que não foi redistribuída, e ainda aprovou arduamente leis contra o tráfico negreiro, após décadas de muita discussão entre os Senadores. O fim da mão de obra escrava “acabaria com o país”, diziam, e a mudança de escravo para empregado assalariado deveria ser “lenta, gradual e segura”. A comparação com a ditadura implantada em 1964 e a Alemanha da Segunda Guerra são inevitáveis.

Uma questão espiritual e pessoal.

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Ajoelhado perante aqueles ossos, minha cabeça pesou e meu coração se encheu de remorso e vergonha. Senti uma energia tão forte vinda daquele solo, que perdi o ar. Isso me fez lembrar de algumas vivências que tive com escravos, a cultura negra e crianças.

A mais antiga me foi relatada por uma tia, há dez anos. Por volta dos meus dois anos, ela me viu “dar baforadas” e fazer sinais ritualísticos de Candomblé. Minha mãe, assustada, havia pedido para que nunca mais tocassem no assunto.

Quando criança, estudei em colégio público e tive amigos em comunidades próximas. Ao visitar um vizinho negro em um conjunto residencial de baixa renda, o irmão menor dele, talvez com uns 13 anos encostou o cano de um revólver na minha cabeça “de brincadeirinha”.

Com menos de 20 anos, vi a mãe de uma amiga, bastante nervosa, com a presença de um grupo de negros com lanças e escudos na sala de sua residência. Apenas achei curioso, mas fiquei alerta.

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Nesse período, presenciei em meu prédio um porteiro negro impedir uma visita de subir no elevador social porque era negra. Ela disse ser advogada e o porteiro alegou obedecer ordens do síndico. Depois, uma vizinha, professora de inglês, me perguntou por que eu recebia amigos negros em casa.

Uma década depois, vi a mãe de uma namorada incorporar um espírito infantil no dia das crianças e pedir para brincar de carrinho com ela, sentados nós dois, em meio à sala.

Passada mais uma década, um Exu me aconselhou a tomar cuidado com a pessoa invejosa ao meu lado. Era uma ex. Para amenizar, o Exu me pediu para tomar banho de ervas, lavar-me com Sabão da Costa – cuja origem é do Golfo da Guiné na África – e acender velas para as almas dos escravos na Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, no centro do Rio. Ao estudar a história da igreja, soube que, a caminho da forca, Tiradentes fez ali as últimas preces em plena rua, pois condenados não podiam entrar em igrejas, e que se dizia que o escritor Machado de Assis (meu favorito) havia sido sacristão no local, o que é refutado pela falta de comprovação documental, mas fato é que a igreja da Lampadosa é citada no conto “Fulano”, publicado no livro Histórias Sem Data.

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Após essas dicas do destino, estudei a história da escravidão no Brasil e certo dia, há alguns anos, assisti a uma entrevista na TV Brasil com a dona da casa, onde hoje é o Memorial aos Pretos Novos. Foi a única vez que a ouvi citar um evento espiritual. Ela havia dito que ao entrar em um departamento do governo para tirar uma documentação sobre a casa, o atendente ficou lívido ao ver que atrás dela havia um grande número de escravos.

Perguntei à dona do local sobre a história relatada na TV e ela me contou que uma médium americana, em visita ao Memorial, contou ter visto espíritos de crianças na área dos ossos, que pediam para brincar, como se nada houvesse acontecido, como se o tempo não tivesse passado.

O que muito me comove é que a descoberta das ossadas ocorreu em 1996, 108 anos após a Lei Áurea e 166 anos após o esquecimento do local do cemitério, em 1830.

Retorno à uma questão anterior e falo das chagas que ainda enlameiam a história de duas nações citadas, o Brasil e a Alemanha. Se esses países não tomarem medidas severas contra o preconceito, ainda reinante, e se não ensinarem às crianças, desde muito cedo, as consequências da cultura do ódio, inevitavelmente veremos os mesmos erros se repetirem.

O que fará a Europa sobre a chegada em massa de imigrantes africanos? Construirá novos campos de concentração? E o Brasil a respeito das domésticas e dos concursos públicos com cota para negros?

Então, de que adianta falar em fraternidade, e amor universal, se ainda acreditam em superioridade racial?