A Sincronicidade do Natal

2010 já acabou, viva 2011.

Viva? Bem, se melhorarmos como indivíduos, ótimo, mas se é para continuar com a alma sedenta por poder, bens materiais e bajulação, então o cenário é negro…

A vida é muito maior, a vida é muito mais bela, ainda mais quando vivemos a mágica.

Nunca esquecerei de ter visto, em pleno Natal, as botas do Papai Noel.

Foi exatamente isso que vi: um par de lustrosas botas que brilhavam no escuro, encostadas à cama dos meus pais, bem em frente à porta do quarto deles no final do corredor do apartamento. E antes que alguém pergunte, a resposta é “não”. Meu pai nunca se vestiu de Santa Claus. Os presentes surgiam ao lado da árvore todas as manhãs na data certinha, era barbada. Nunca questionei se o bom velhinho era real ou não. A felicidade que me assombrava quando eu recebia os presentes era tanta que não me cabia questionar o inquestionável. Hoje, crianças com dez anos vivem na internet, eu lia Monteiro Lobato e não pensava em mulheres, apesar do meu pai tentar me transformar em um garanhão insensível, mas graças a Deus, não obteve sucesso.

Elas, as botas, pareciam enormes, gigantes, ainda mais para o meu antigo tamanho de anão de jardim.

Fiquei tão assustado que nem consegui escancará-las, me pareceu proibido ousar além dos meus limites, atravessar uma ponte intransponível entre o mundo real e o da imaginação. Como eu, um pequeno ser, poderia se atrever a ver Papai Noel em toda a sua majestosidade? O pouco de luz – vinda da lâmpada do corredor – me permitiu vê-las, inclusive os pon-pons, não me encheu de coragem para ver o ser mágico na íntegra. Desculpem-me, não me arrisquei a olhar para cima e vê-lo em sua plenitude de ser físico, barrigudo e sorridente. Saí correndo gritando: “Eu vi Papai Noel!”.

Esse encontro me deixou tão perplexo, entre botas e crianças, que quando eu e meu irmão, que dormíamos em um só quarto, tivemos que escolher quem ficaria na janela ou ao lado da porta, eu pedi para ficar com a porta, pois se Papai Noel tentasse entrar pela janela, daria tempo para eu me escafeder como o Leão da Montanha.

Os adultos tem o hábito de culpar o velho Noel por decisões que não são da sua alçada, ligando a sua ausência ao nosso mal comportamento: “Papai Noel ainda não chegou” ou “Esse ano ele não vai trazer o seu presente porque você não foi bonzinho para a mamãe”, diziam. Certamente, a pouca produtividade do salário, incapaz de atender a todos os pedidos dos filhos, era o real motivo da ausência dos presentes natalinos em alguns momentos de nossa história familiar. E olha que éramos apenas dois irmãos. Mas nossos pais se esforçavam para nos atender, isso não posso negar. Se o par dos fantásticos pés pertencia a alguém de fato, não vem ao caso.  O importante é que o cheiro do Papai Noel estava lá; eu mesmo o sentira.  Esbaforido, voltei à sala, em extâse.

 

“Papai Noel está no quarto!”

 

Comuniquei aos adultos que o velhinho estava no quarto no final do corredor, porém o máximo de admiração que me ofertaram foi bem menor do que meu coraçãozinho esperava. Talvez uma das minhas primeiras frustrações.  Ninguém se deu ao trabalho de me acompanhar para tirar a prova dos nove: foi uma lástima.  Me deu vontade de chorar. Até hoje me sinto um pouco assim, como aquele garoto que ninguém escuta, quando afirmo existir mágica no mundo.  Fato relevante que praticamente ninguém vê, ou finge que não vê. Pior ainda foi o dia em que nossa mãe nos comunicou laconicamente que Papai Noel não existia, que ela e meu pai colocavam os presentes na árvore de natal e que devíamos parar de acreditar nessas bobagens de Noel, Boitatá e Curupira. Foi assim mesmo: um comunicado meio amargo, nos arrancando impiedosamente a prótese da pureza. Só de  birra, até hoje não acredito em uma só palavra do que ela disse. Veja lá se vou cair nessa…

Acredito em mágica, porque eu vivo a mágica. Não preciso implorar por amor ou reconhecimento e nem puxar adultos bêbados pelas mangas para verem o que não querem ver.

Passados vários anos, o mesmo quarto de mamãe serviu de palco para peças para as quais fui escalado à força. Vivi aquilo que chamam de experiência Crística para o nível da minha compreensão e idade. Uma espécie de iniciação, ou primeira crucificação, simbolicamente falando.

Ainda era bem pequeno e todos os sentimentos tornavam-se gigantescos em comparação. A cabeça de uma criança de 13 anos nos anos 70 era bem diferente das de hoje. A história é essa: O pai de minha mãe era um jornalista que almoçava semanalmente em nossa casa e, em uma de suas visitas, mamãe estava muito nervosa porque eu não havia cortado o cabelo – segundo ela, para agradar o meu avô (ou seria para agradá-la?). A solução encontrada, unilateralmente, foi me obrigar a permanecer escondido sob a cama do seu quarto, a mesma das botas de Noel, para que vovô não visse o neto com a aparência “suja”. Mamãe estava tomada por um horror estranho, como se pudesse ser repreendida por ter falhado e preferiu me dar em sacrifício do que encarar o pai. Apesar de não entender muito bem o que estava acontecendo, estranhei muitíssimo o fato de minha mãe, que era tão poderosa aos meus olhos, transformar-se em alguém tão amedrontada na presença de outro ser humano, afinal, para mim, eram apenas pessoas.  Nada mais. Meu irmão, por ter cortado os cabelos, teve permissão para participar do almoço na sala de jantar. Eu que comesse depois. Do chão do quarto, dava claramente para ouvir mamãe inventando as mais estranhas desculpas pela minha ausência. Ela exigira meu silêncio de morto sob o estrado da cama. Meu avô, muito mais esperto do que a filha, apenas ouvia e duvidava. Assim fiquei sob o colchão e o estrado, sem julgá-la, apesar de ser bem incômodo tentar não demonstrar minha presença.  Fiquei apavorado até de respirar!  O chão não havia sido varrido e estava difícil sentir-me confortável.  Poeira, pouco espaço e minha cabeça encostada no chão gelado.

Quando os sapatos do meu avô – os sapatos, sempre os sapatos – adentraram o quarto, ficando imóveis por alguns segundos que mais pareciam horas, meu coração pareceu saltar da boca.  Tinha certeza de que ele sabia que havia um neto embaixo da cama, pois ele nunca havia ido até o quarto no final do corredor. Ele sabia, eu sabia, meu irmão sabia e mamãe sabia. Eu só não queria decepcionar mamãe duas vezes. E lá, amedrontado e humilhado, lembrei das botas natalinas ao ver os lustrosos do vovô. Sapatos de horror, todos.  Meu maior medo era que meu avô se abaixasse e fitasse meu rosto espremido contra o chão. Cheguei a rezar.

E lá continuava meu avô, em posição de sentido à procura de um neto escondido sob o colchão.

Mas todos se assemelham na velhice, onde todos os pecados são pagos.

Paulatinamente, meus pais foram “morrendo” ainda em vida, um para o outro e posteriormente para mim, metamorfoseando-se de mitos em seres comuns.  Além da idade avançada, havia o pior sintoma da velhice: manter estruturas carcomidas.  Ambos não se entendiam mais. A relação se desgastara e era clara a vontade dele em escapar e a dela em manter o casal à força. Nunca me pareceram melhores do que qualquer outro casal, apenas mais um. A diferença é que eram meus pais.

O tempo passou e meu avô, até mesmo pela idade avançada, perdeu os sentidos e, a partir daí, a própria memória. Durante uma das visitas aos sábados à tarde, impostas por minha mãe para assistirmos nosso avô sendo destruído pelo tempo – senhor implacável de todos nós -, na Tijuca, ele fez a grande pergunta que marcou época: “Quem são essas duas moças?” Eram eu e meu irmão.

Após o falecimento do vovô foi necessário desocupar o apartamento – esses sim, não morrem nunca a não ser a marretadas -, que como o destino, observam o rodízio dos novos locatários de suas repintadas paredes. As cores e as pessoas se vão, as paredes ficam. Para surpresa de minha mãe foram encontradas exatas cem enferrujadas lâminas de barbear, usadas, porém nunca jogadas fora; hermeticamente preservadas em uma gaveta com restos de creme de barbear e pelos antigos. Sempre que penso em jogar algo fora, – e decido fazê-lo -, lembro das lâminas que nunca conheceram o fim durante a existência do meu avô. Penso na inutilidade de coisas como livros nunca relidos que só se amontoam nas estantes – quando não, em caixas.  Meu avô, sem querer, acabou por ofertar-me uma das maiores lições que poderia esperar de alguém.  Atuou em silêncio como um mestre esperando o tempo necessário para que eu crescesse e pudesse compreender a grandeza das pequenas coisas.